Cultura sem fronteiras

Reynaldo Damazio
participou Diana Araujo Pereira


Para o antropólogo argentino, radicado no México, Néstor García Canclini, “a indagação sobre os sujeitos capazes de transformar a atual estruturação globalizada nos levará a atentar aos novos espaços de intermediação cultural e sociopolítica”. Autor de livros de grande circulação no Brasil, Canclini fala nesta entrevista exclusiva sobre alguns de seus principais conceitos, como hibridação e mobilidade identitária.




CADERNO DE LEITURA: Em uma recente entrevista (2005) àRevista de Occidente, de Madrid, você propõe o termo interculturalidade para definir as relações entre imaginários e identidades na América Latina. Em que ele se diferencia do conceito de hibridação?
NÉSTOR GARCÍA CANCLINI: Hibridação designa um conjunto de processos de intercâmbios e mesclas de culturas, ou entre formas culturais. Pode incluir a mestiçagem – racial ou étnica –, o sincretismo religioso e outras formas de fusão de culturas, como a fusão musical. Historicamente, sempre ocorreu hibridação, na medida em que há contato entre culturas e uma toma emprestados elementos das outras. No mundo contemporâneo, o incremento de viagens, de relações entre as culturas e as indústrias audiovisuais, as migrações e outros processos fomentam o maior acesso de certas culturas aos repertórios de outras. Em muitos casos essa relação não é só de enriquecimento, ou de apropriação pacífica, mas conflitiva. Fala-se muito, nos último anos, de “choque” entre as culturas. Em todo esse contexto vemos que os processos de hibridação são uma das modalidades de interculturalidade, mas a noção de interculturalidade é mais abrangente, inclui outras relações entre as culturas, intercâmbios às vezes conflitivos.

CL: Como diferenciar o consumo de cultura, no mundo globalizado, dos interesses de mercado? Há como distinguir o objeto artístico da noção de marca, com suas características mercadológicas estritas?
CANCLINI: O consumo de qualquer produto, e também o de bens culturais, é o momento final do ciclo econômico, que inclui a produção e a circulação. No campo da cultura falamos de consumo, mas também de apropriação, para nos referirmos ao caráter ativo e a possíveis reapropriações e modificações que o consumidor pode fazer ao receber um programa de televisão, ler um romance, ou relacionar-se com uma mensagem na Internet. Nesse ciclo, sabemos que a maior parte dos bens culturais funciona como mercadoria, portanto são objetos de operações de venda, compra e trocas mercantis. O consumo costuma referir- se às necessidades dos consumidores, mas igualmente aos desejos, outros tipos de disposições dos sujeitos que não são simplesmente necessidades. Quando nos referimos aos objetos artísticos, falamos de um tipo de bem, ou de mensagem, que tem uma longa história de definições ou de redefinições. Em certa etapa da modernidade, consideravase arte o tipo de experiência, ou de objetos, em que a forma prevalecia sobre a função. Na atualidade, há muitas outras, que reafirmam o prazer, o caráter transcendente da experiência, a intensidade do que sentimos ao nos relacionarmos com o ideal artístico. A noção de marca pode se opor, num certo sentido, a esse tipo de experiência singular, porque tende a agrupar os objetos artísticos ou literários em séries, onde se perde a especificidade de cada um. Por exemplo, no mercado literário costuma-se agrupar os romances em tendências, como o realismo mágico, ou romances históricos, mas entre cada um deles há diferenças que têm a ver com os autores e com a especificidade de cada busca artística.

Caderno de Leitura: Em que medida o consumismo desenfreado de bens culturais ainda pode ser investido de um conteúdo político e antropológico, como o de cidadania, tema de seu livro Consumidores e cidadãos?
CANCLINI: Não gosto da noção de consumismo, porque costuma ser utilizada para desqualificar a proliferação dos bens de consumo e os comportamentos que tratam de incrementar o consumo. Em princípio o consumo não é mal, o mal é não poder consumir. Na sociedade contemporânea, em que se implementou a universalidade de bens, resultam insatisfatórias as opções que em outras épocas tiveram certo êxito, como a do consumo como um lugar de simples satisfação de necessidades utilitárias. Em quase todo tipo de consumo estão claramente presentes um conjunto de dimensões estéticas, de sentidos sociais, antropológicos, que às vezes são ocultados pela publicidade e pela redução da diversidade de significados a uma função única. Quanto à cidadania, efetivamente, muitas vezes ela se opõe ao consumo, como se ser cidadão não fosse uma atividade mais nobre que a satisfação proporcionada pelo consumo. Ambas atividades, consumir e ser cidadão, são indispensáveis para a sociedade, sobretudo as democráticas. Se não tivermos consumo, não se completaria o ciclo de produção e não poderíamos sobreviver. Vejo a função dos cidadãos nesses processos de consumo como um conjunto de atos de responsabilidade social através dos quais tratamos de participar dos desenhos da produção e da circulação do consumo.

Caderno de Leitura: Você afirma que o sujeito latinoamericano deve aprender a entrar e a sair da modernidade. Será que conseguimos avançar nesta mobilidade identitária tão fundamentalmente temporal?
CANCLINI: A formação da América Latina e das nações modernas, em nosso continente, está ligada ao caráter mundial da modernidade. O que vimos nos anos 80 e 90 do século passado é que a modernidade não é um processo linear, mas um estágio de desenvolvimento humano no qual se ingressa de uma vez para sempre, excluindo outras formas de desenvolvimento. Talvez na América Latina seja mais evidente que em outros continentes que a modernidade se instalou com seu projeto de emancipação humana, especialmente na apropriação da natureza, no desenvolvimento científico, na educação generalizada, coexistindo com formas tradicionais de origem étnica e, em muitos casos, derivadas da pobreza e do lento desenvolvimento da sociedade. Com o tempo, vamos concebendo a modernidade não como um estágio homogêneo e estático, mas como um desenvolvimento que inclui diversas modalidades de crescimento econômico, de pluralidade cultural e com ampla diversidade. Em meu livro Diferentes, desiguais e desconectados (Editora da UFRJ) avancei na discussão sobre a modernidade, expondo que as diferenças na modernidade existem às vezes como desenvolvimentos culturais distintos, outras vezes como resultado da desigualdade das classes, entre as nações, entre os grupos sociais, e mais recentemente em relação com as possibilidades de conexão e desconexão das comunicações, ou das redes de informação, entretenimento e participação social. A mobilidade identitária tem muito a ver com essas diferenças, desigualdades, conexões e desconexões, com uma combinação dessas modalidades.

Caderno de Leitura: Em palestra no Instituto Cervantes, de São Paulo, você disse que a criação artística e literária é um local de resistência. Qual o teor dessa resistência e contra o quê a literatura e a arte podem resistir?
CANCLINI: Naquele encontro, falamos das tendências dos mercados culturais a reduzir a complexidade e a diversidade sociocultural às modulações, ou modelos, mais exitosos de vendas e de clientelas. Este é um problema em todos os campos da produção. Em arte e literatura este empobrecimento dos significados e das referências é ainda mais grave. Muitos artistas e escritores contemporâneos aceitam estas exigências dos mercados e das editoras, ou dos grandes produtores de bens de entretenimento, com o propósito de vender mais e ter mais público. Mas também encontramos artistas e escritores que se interessam mais por uma experiência criativa, por comunicá-la e fazer partícipes dela públicos diversos. Isso tem a ver com a polissemia dos bens estéticos e com a oportunidade que as obras literárias oferecem de conectar-se de modo diferente com leitores diversos. Neste sentido, a criação artística e literária seria uma resistência em relação àquelas tendências à homogeneização e ao achatamento das experiências sociais e culturais.

Caderno de Leitura: Ao analisar questões complexas como multiculturalismo, globalização e construção de identidades, você utiliza muito o conceito de fronteiras. Poderia explicar em que sentido esse termo nos ajudaria a compreender a exclusão da grande maioria de cidadãos, nos países em desenvolvimento, dos projetos neoliberais aplicados em escala planetária? Existem situações paradoxais, em que o desemprego acaba gerando novas formas de trabalho.
CANCLINI: Historicamente, as fronteiras são identificadas com os territórios étnicos ou nacionais, tomando forma de barreiras físicas, aduanas, controles de trânsito das pessoas ou produtos. No século XX, tudo isso se tornou muito mais complexo, pelo aumento da circulação de pessoas, das migrações, das viagens de turismo, pelo crescimento da circulação de produtos, que passam de uma nação a outra, e por vezes nem se sabe onde são produzidos, ou são produzidos em vários lugares e se montam em outro. Também as mensagens circulam mais livremente desde que existem satélites, computadores, Internet, e podemos passar com facilidade mensagens de uma nação a outra, de uma língua a muitas outras, tornando inúteis muitas fronteiras. O que chamamos de globalização, um conjunto complexo de processos de interdependência que supera o econômico, o tecnológico e o cultural, cria muito mais que um multiculturalismo, porque a multiculturalidade tendia a designar a coexistência de grupos diferentes em uma mesma sociedade, às vezes numa mesma cidade. Em escala internacional, vemos nas guerras atuais que a multiculturalidade não é respeitada pela invasão de uma nação por outra, que em parte implicam na derrubada de fronteiras ou na construção de outras. Como as que existem entre México e Estados Unidos, entre Israel e Palestina etc. Essa proliferação de fronteiras nas sociedades contemporâneas nem sempre é resultado de uma atitude defensiva e hostil ao estrangeiro. Implica às vezes na dificuldade de assumir a interculturalidade. Quer dizer, aceitar que a sociedade em que vivemos se modifica pela presença de outros modos de vida, outras religiões, outras línguas. 



Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade
Tradução de Ana Regina Lessa, Heloísa Pezza Cintrão e Gênese Andrade
Edusp – 416 págs. – R$ 62


A Globalização Imaginada 
Tradução de Sérgio Molina
Editora Iluminuras – 223 págs. – R$ 40 


Consumidores e Cidadãos
Tradução de Maurício Santana Dias
Editora UFRJ 227 págs. – R$ 32


Diferentes, desiguais e desconectados
Nestor García Canclini Tradução de Luiz Sérgio Henriques
Editora UFRJ 283 págs. – R$ 38


Fonte: http://www.edusp.com.br/cadleitura/cadleitura_0802_8.asp

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